Lua Nova em Virgem, cuidado com a “Nova Terra”.
Chegamos à 3ª semana de Setembro abraçados pelo fogo.
O Pantanal arde, assim como o ano passado ardeu a Amazónia numa dimensão que ultrapassou tudo o que se tinha visto até agora. Assim como no fim de 2019 a Austrália viu-se a braços com incêndios de uma violência como há muito não se via. Estes são ataques directos aos principais biomas do nosso planeta.
Perante tudo o que estamos a assistir, não só em termos ecológicos como políticos e sociais é normal fugir, dissociar, encontrar formas de adormecer a indignação e o medo do futuro. Acho mesmo que criar mitos e cultivar imagens míticas que mostrem um horizonte para lá do caos onde nos encontramos, é mesmo vital, para podermos manter-nos presentes e participativos nesta dura realidade.
Agora, vivemos numa sociedade que deixou de saber ler mitos, tudo é literal, somos escravos da linearidade. E isso é perigoso, como se vê.
Eu pertenço a um grupo de pessoas que desde os anos 60 (90 no meu caso), tem vindo a observar com muita preocupação a destruição dos ecossistemas do nosso planeta, assim como do tecido da nossa cultura. Entrei na primeira década deste milénio à procura de soluções. Na altura pautava a vida pelas minhas aspirações espirituais e fui encontrando grupos, muitos deles filhos de movimentos dos anos 80 que defendiam a ascensão planetária e o nascimento de uma nova era, a tal “New Age”. Estes movimentos prometiam uma “Nova Terra” e nos éramos os personagens principais, aqueles que iriam através da sua vibração elevar o planeta a um novo plano de consciência. Seríamos nós e o nosso compromisso espiritual a parir um novo mundo.
Olhando para o estado do planeta neste momento entendo que a urgência de fortalecer a imagem de uma “Nova Terra” se faça sentir de uma forma ainda mais premente que há 20 anos atrás.
Neste caminho espiritual de discipulado, conheci algumas das pessoas que mais me influenciaram e que mantenho como modelos até hoje. Não porque eram muito ou pouco espirituais, mas porque eram seres humanos com a mesma grandeza de carácter que reconheço nas minhas relações mais intimas. Essa que me serviu de berço e à qual aspiro.
Mais do que os professores espirituais, o que ficou daquela época foram as amizades que cultivo com carinho até hoje.
Quando o meu filho nasceu eu renasci, não para uma “Nova Terra”, mas para a velha imperfeita, imprevisível, cruel e maravilhosamente obstinada Terra que temos. Esta que os meus pés pisam todos os dias e que generosamente testemunha a história e legado da minha família e cultura.
Deixei o assunto da “Nova Terra” de lado, permitindo simultaneamente encontrar novos significados para o chamado do eixo Virgem/Peixes em mim.
Quando comecei a estudar a obra de James Hillman, dei-me conta que para ele a inocência era algo ofensivo, daquilo que pude entender, ele defendia que o culto da inocência, da pureza e virtuosidade, tem vindo a criar uma cultura infantil, de homens e mulheres incapazes de ver a totalidade do mundo, incapazes de criar uma linguagem estética que abrace a imensidão da existência e as próprias leis da vida/morte/vida.
Na altura e talvez pela força do eixo Virgem/Peixes em mim, achei aquele ataque ao altar da inocência um pouco estranho já para não dizer ofensivo. Mas talvez por me ter incomodado tanto, mantive o desconforto por perto, como um desafio a questionar os meus pontos de vista e perspetivas.
Ultimamente entendo o que Hillman queria dizer, quando digo entendo, enfim… reduzo-me às capacidades de entendimento que tenho agora, sabendo que no futuro podem ser outras, ou seja, poderei acalentar outros olhares sobre a questão. Mas hoje, no tempo em que vivo, na dança cósmica que todos dançamos, eis o que penso sobre a “Nova Terra”.
Talvez se vivesse na África profunda, ou na Amazónia se fosse herdeira de uma cultura indígena cuja cosmologia e mitologia não tenham sido colonizadas, conseguisse enquadrar a dimensão mítica da imagem “Nova Terra” numa narrativa cosmológica inclusiva da totalidade e soberania da Terra enquanto identidade psíquica. Mas não pertenço a essas narrativas nem a essas cosmologias. Sou Europeia, vitima da colonização e órfã da sabedoria mítica dos meus ancestrais. Sou filha do colonialismo, corre-me nas veias o sangue da conquista e da desapropriação. Está é a verdade da minha cultura e simultaneamente a minha maior limitação.
As narrativas míticas actuais, muitas delas são apropriações de outras culturas, outros lugares que não os nossos. Sempre que me aproximo delas, corro o risco de as descontextualizar e ficar vítima dos grilhões inconscientes desta cultura da qual sou herdeira. Vivemos um sério problema de leitura e interpretação. A criação de significado ocorre num nível inconsciente e nesse mar não estamos sós, somos teia, fazemos parte de uma paisagem específica. De certa forma somos ao mesmo tempo crianças e adultos num ecossistema que precisa que estejamos presentes, atentos e enraizados, não só na realidade das nossas circunstancias, mas também nas limitações das mesmas. Eu sei…limitação é uma palavra nada popular nos tempos que correm.
Hoje em dia caminho com maior atenção às limitações impostas pela minha própria história. Talvez por isso o termo “Nova Terra” active os meus sinais de alarme.
As palavras criam e sustêm estruturas de significado que são ditadas pela própria cultura onde vivemos, quer queiramos, quer não.
Numa sociedade individualista como a nossa, afirmar que não és totalmente dono das palavras que usas, pode ser ofensivo, mas a verdade é que a linguística constrói-se como resposta às necessidades de uma cultura e não de um indivíduo. Se queremos construir um futuro realmente diferente do modelo actual, é importante escolher com cuidado as palavras que usamos. O inconsciente cultural do qual fazemos parte, construiu e significou um conjunto de palavras que formam a narrativa em que vivemos, a palavra “nova” é uma delas.
Na minha linhagem e herança colonialista, ‘novo’ apresenta-se como a solução sempre que o velho não presta ou já não serve. Traz em si implícito o descartar do antigo para ir em busca de algo maior, melhor. Afinal de contas quando saímos da “velha Europa”, fomos explorar e expropriar o “novo mundo”.
O” novo” é o emblema da cultura infantil e individualista onde vivemos. É justamente parte do grande problema que temos em mão. Então se por um lado, imaginar uma “Nova Terra” é importante enquanto processo criativo e exercício de imaginação mítica, por outro deixa implícito num nível sub-consciente que o velho já não serve, que temos o dever e direito de abandonar o que destruímos e ascender a algo diferente. Clamar por uma “Nova Terra” coloca-nos novamente numa posição acima da Terra, como se o ser humano fosse o único responsável pela manutenção e destino deste nosso planeta. Como se a própria Terra dependesse dos humanos para fazer aquilo que faz à biliões de anos. A própria história da Terra está envolta em mistérios, há muito que não se sabe ainda acerca dos seus ciclos de vida/morte/vida.
A Terra desenvolve-se com ou sem humanos, ela é ciclicamente contínua, como aliás tudo o que existe. Nós não precisamos nos esforçar pelo novo, ele chega na hora que chega, é simples assim.
A consciência humana é convidada a abraçar o novo quando o trauma é integrado e re-significado na narrativa, seja individual ou cultural, acredito que esta é a “Nova Terra” em que nos encontramos, no resignificar do tecido traumático, na restauração do novo/velho terreno da consciência colectiva.
Do meu ponto de vista actual (que vale a que vale) o novo chega ciclicamente onde tem de chegar, alicerçado no velho, já que o tempo da evolução é um tempo espiralado e não linear. Nesta perspectiva espiralada, as referências de novo ou velho, perdem sentido.
O cuidado com a expressão “Nova Terra”, levanta-se pela pobreza e aridez de imaginação mítica da nossa cultura moderna. Corremos o risco de nos apropriarmos da imagem da “Nova Terra”, de transformá-la em mais um objecto de consumo, sendo inevitavelmente nós os consumidos por esta parte da psique-colectiva que cresceu desmesuradamente. A parte masculina, do novo, do mais, do maior, do auto.
Ousemos estar inteiros e participativos nas dores e delícias deste novo/velho mundo.
Possamos gritar as injustiças em plenos pulmões, chorar a perda e a morte dos biomas terrestres como se não houvesse amanhã, pois pode não haver mesmo. Mas juntos, abraçados pelo destino comum que todos partilhamos. Suportados pelas comunidades das quais fazemos parte.
Está na hora de começar a falar sobre um futuro com falta de água, falta de alimentos e condições de habitabilidade, porque esta é a Nova Terra que nos espera, neste mundo concreto em que vivemos.
Esta é a dura verdade, a dura imagem que nós adultos infantis tapamos com anúncios e comerciais de um maravilhoso Mundo Novo.
Se por um lado precisamos de uma imagem imaculada de luz, vida e bondade, onde podemos ir lavar as feridas e alimentar a Alma, precisamos ao mesmo tempo sentarmo-nos à mesa com a imagem oposta e dar a ambas exactamente a mesma atenção.
Esta é a minha corajosa, dura e determinada invocação de Lua Nova, face aos trânsitos planetários e ao que estamos a viver.
Com carinho
Ana Alpande
Se te identificas com que acabaste de ler, talvez queiras assinar a minha newsletter mensal. A cada Lua Cheia eu envio um e-mail com novidades e inspiração.
Subscreve o correio da Lua Cheia