“Ritual é a delicada arte de fazer uma pausa.”
Emma Restall Orr
Todos os dias, assim que acordo e enquanto o calor dos lençóis me protege o corpo, respiro conscientemente, preenchendo os meus contornos invisíveis a olho nu de esperança e possibilidade. Tal como o recém-nascido, cujo primeiro gesto fora do mundo aquático é respirar, também eu despeço-me da realidade onírica com um par de longas e agradecidas respirações.
Este é o primeiro ritual do meu dia.
Não o aprendi em nenhum livro ou revista, não é filho de nenhuma religião, não tem nenhum propósito em concreto a não ser o de agradecer profundamente o facto de estar viva, reconhecendo a inevitabilidade de um dia poder não acordar.
Respiro para agradecer ao meu corpo e à existência mais um dia de possibilidades.
Durante o dia tenho outros rituais, outros momentos de pausa entre a mente que processa e discrimina e os ditames do tempo do relógio.
Um ritual é sempre um momento entre tempos. Um portal que abre uma fenda no tempo cronológico e que insemina o extraordinário no ordinário.
Todos temos os nossos rituais únicos e secretos, protectores do território da nossa pertença à Alma do Mundo, muitos deles subconscientes quase que passam desapercebidos.
Um ritual é sempre um acto de criar pontes entre a nossa consciência individual e esta pertença maior à grande teia da vida. Uma forma de sair da fronteira do eu, para participar de forma inteira na dança do mistério, o que implica necessariamente ser-se participado por algo que emerge de um outro lugar onde o corpóreo não chega.
Esta é uma necessidade básica da alma, todos os humanos precisam de rituais para cultivar pertença e vínculo ao Grande Mistério.
Os rituais nascem muitas vezes em lugares inesperados, nas beiradas das janelas ou entre as fendas da calçada. Não somos nós que os criamos, são eles que se insurgem no nosso consciente e que nos acolhem com mantos sagrados de conexão. Às vezes estes mantos são da mais fina e exótica seda, debruados com fio de outros lugares e tradições, são estruturados e planeados com cuidado, honra e realeza. Mas muitas vezes, na grande maioria, são feitos de fios toscos de lã, desta que as nossas avós fiavam, tão simples e familiares quanto o aroma do café que abraça o espaço da cozinha logo pela manhã.
O que importa não é o aparato do ritual, a fineza ou riqueza do manto que usamos. O mais importante é a capacidade momentânea de entrega radical ao momento presente. Completamente radical.
Já assisti à transformação de estados anímicos com o simples gesto de acender uma vela. Feito com presença e significado, não da mente que pensa, mas da alma que através do corpo se faz presente, e conversa com o elemento fogo como se este fosse o sacerdote do mais sagrado templo. Acender uma vela pode literalmente iluminar os cantos mais escuros e doridos do nosso interior. Estas coisas quando acontecem são mágicas, terrivelmente simples e profundamente complexas. Tão simples que facilmente passam desapercebidas, tão complexas que ninguém consegue verdadeiramente formular como, porque é que aconteceram naquele momento, de forma espontânea, e não noutro qualquer de forma mecânica.
A Carolina fazia anos, o primeiro aniversário após a morte da sua mãe. Não quis festas nem celebrações, decidiu passar o dia sozinha e despachar de forma cortês os telefonemas de felicitações. Passou a tarde a tentar não dar importância ao assunto, tratou da casa, dobrou toda a roupa enquanto devorava uma série “cor-de-rosa” da Netflix para enganar a zanga que sentia na boca do estômago. A zanga que andava a calar desde que a mãe tinha sido diagnosticada com cancro, a zanga de a mãe ter sido levada pela morte sem que ambas tivessem tido o tempo de fazer tudo o que queriam fazer juntas. Enquanto adormecia as emoções com o ruído da televisão sentiu uma saudade enorme da mãe. Com a leveza de quem não tem nada a perder foi buscar o velho álbum, ao olhar as fotografias de quando era pequena deixou cair uma ou duas lagrimas engasgadas. Quando o relógio bateu as cinco horas, a sua hora de nascimento, sem se perceber, quase como que tomada por uma vontade maior, acendeu uma vela. Não o tinha planeado, até teve que parar para pensar se tinha velas em casa e onde é que as guardava. No breve instante em que o fosforo faiscou, Carolina viu o último sorriso da mãe, na chama fugaz. A única coisa que o cancro não lhe roubou. Naquela parte de segundo, o coração finalmente voltou a caber no justo lugar do peito. Agradeceu à mãe a vida, agradeceu ao cancro a visceral intimidade, esta que não desejou, mas que ainda assim a fez ser carne, sangue e lágrimas com a mãe. A vela acesa preencheu a sala de uma presença quase palpável, de algo antigo e cheio de amor e mistério. Enrolada no sofá por entre as roupas distribuídas em montes, com o barulho oco da televisão, deixou-se abraçar, e a boca do estômago lentamente rendeu-se ao calor.
Esta pequena história ilustra o exemplo de um ritual espontâneo. Naquela hora, naquele exacto momento a Carolina teve uma intuição, ela nem se apercebeu, veio como uma vontade espontânea, era apenas uma vela. Nada de especial. Estes são os rituais mais profundos, os que nos acontecem sem que para tal tenhamos sido tido nem achados. Tanto o leitor quanto eu já tivemos várias experiências parecidas. E quantas mais poderíamos ter tido se guardássemos mais espaços no nosso quotidiano para a espontaneidade?
Qualquer gesto, ou acção realizado em presença e atenção é um potencial ritual. Cabe-nos trazer o corpo e a consciência para o momento, vivê-lo por inteiro. O ritual pode até durar breves segundos, mas o tempo da alma não se rege pelas leis do tempo do relógio. Por isso a pausa oferecida pelo ritual, pode na verdade levar-nos a experiências intemporais.
Resgatar a presença de rituais no nosso dia-a-dia é um acto de reclamar a presença radical à vida e aos seus inerentes mistérios, mas também de regressar conscientemente à complexa teia que liga toda a existência. Sempre que entramos na presença de um ritual religamo-nos à alma do mundo e às vezes num dia corrido e cheio de solicitações, os breves segundos de contacto com algo que transcende a atenção binária, é o suficiente para realinhar a nossa presença e relembrar o nosso propósito, o tal regresso ao coração, pelo labirinto do quotidiano.
Com carinho
Ana Alpande
Créditos da Imagem Content Pixie on Unsplash
Artigo publicado na minha Coluna “O Canto do Verbo” na Revista Vento e Água
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