Crónicas Sobre O Pendular Do Tempo E O Afecto Vivo À Matéria Morta

Crónicas Sobre O Pendular Do Tempo E O Afecto Vivo À Matéria Morta

Crónicas Sobre O Pendular Do Tempo E O Afecto Vivo À Matéria Morta

A minha avó descascava as favas com a paciência de quem é intimo do tempo, grão a grão galopava certeiramente a espessa camada verde oliva, mesmo quando esgotava a força da unha do polegar.
Fazia-o por amor: amor aos da casa, amor a si mesma, amor ao próprio tempo e à sua condição de mulher cuja cronologia diária era ditada pelo intervalo entre refeições e a arte de nutrir corpos; os corpos da casa que ora entravam, ora saiam do espaço, enquanto pacientemente contava as ausências pelo som da Ave-Maria que ressoava na caixa de madeira escura, relógio da sala, a minha primeira introdução à inevitabilidade do pêndulo.


A indumentária da minha avó era sempre a mesma: uma bata de tecido barato comprada na praça e uns manguitos feitos com restos de lençóis velhos para proteger as mangas dos casacos e camisolas. Acho que os primeiros pontos que dei foram nos meus primeiros manguitos, que recebi de presente aos quatro anos quando já tinha idade suficiente para subir ao banco e ajudar a minha avó a lavar as folhas de alface que o meu avô trazia da horta, ainda a cheirar a terra molhada e a corpos de insetos.
Aprendi com a minha avó a remendar as horas com pontos certeiros e orações simples, quase sempre responsos e ave-marias que preenchiam o espaço livre da cozinha, onde as ondas sonoras fundiam-se com os raios de sol.
Todo o universo da minha avó parecia girar ao redor da preparação das quatro refeições do dia, entre horas limpava, remendava e contava histórias com vividez e entusiasmo de criança.


Quando lavávamos as folhas cheias de frescura e delicadas nervuras, ou quando remendávamos os trapos com carinho e atenção parecia que estávamos suspensas no tempo, que tudo o que existia era aquele lugar, naquele momento e todo a amor que os poros de uma jovem pele pode absorver, não como uma prisão ou redução da imaginação de criança, mas como o universo do tempo-não-tempo, um outro lugar
da existência por onde as crianças navegam com facilidade e onde os adultos parecem não conseguir entrar. A minha avó entrava e saia com tamanha mestria que às vezes eu não tinha a certeza se ela era verdadeiramente velha ou nova, tão nova quanto eu, tão nova quanto a mais tenra folha da mais jovem alface, apaparicada pela suavidade do sol primaveril e acolhida pelo gentil orvalho.
Tudo naquela cozinha cheirava a refogado, maçã cozinha, gestos familiares e a um compromisso sério em dizer não ao desperdício, fosse ele de substâncias formais, estas que têm forma concreta, fosse da atenção preciosa dada às coisas que crescem, envelhecem e morrem tão devagar que quase que perdemos o a tempo passar, a fiel batida pendular do relógio que anuncia a porção de tempo que acabou de desaparecer para nunca mais voltar. A minha avó era bem ciente da trágica realidade que o tempo não se recupera, por isso vivia devagar com o vagar de quem se dá por inteiro e sabe verdadeiramente apreciar o valor da porção de vida que lhe cabe viver.


Eu nada seria sem ela.


Sem ela seria poeira suspensa num dia de vento e nevoeiro, um espectro medroso, vagueando pelo espaço do por vir a ser. Uma folha perdida da sua casa, do seu chão, levada pelo vento para lugares que nunca poderá alimentar.
A minha avó está em mim como o sangue, as vísceras e os ossos.


Quando morreu, morri com ela e demorei muito tempo a renascer para a realidade de não poder mais escutar a doçura rouca da sua voz ou lavar-lhe os óculos garrafais para lhe ver bem os olhos de saudade.


Renasci nós, nunca mais pessoa individual, mas colónia colectiva de afetos, traumas e memórias. Hoje sou tudo o que fomos juntas: riso, beleza, tristeza, saudade, e o amparo de saber pisar o chão por inteiro, não porque quero alguma coisa do chão, mas sim porque sou o seu projecto em constante transformação.
Cada vez menos eu, cada vez mais nós, uma amalgama de tecidos, espectros, fogo, espaço e as águas sagradas da memória. Essa memória que guarda a eternidade.
Embora esteja muito satisfeita com a finitude das coisas, não estou disposta a aceitar o fim do amor, por isso cultivo orgulhosamente a teimosia de não aceitar a morte das coisas como o fim do afeto às coisas.


É só mesmo por causa desta teimosia que afirmo que desde a matéria mais pesada, à partícula mais leve, é o amor, sempre o amor que encadeia a delicada dança da transformação.


Eu só posso aspirar a ser como a cozinha da minha avó, o espaço onde a oração ressoa e os cheiros mornos do afeto constroem paredes de memória para as próximas gerações.

Com carinho

Ana Alpande

Créditos da Imagem Tiago Cerveira

Artigo publicado na minha Coluna “O Canto do Verbo” na Revista Vento e Água

Se te identificas com que acabaste de ler, talvez queiras assinar a minha newsletter mensal. A cada Lua Cheia eu envio um e-mail com novidades e inspiração.
Subscreve o correio da Lua Cheia

Espalha a beleza, partilha.

About The Author

Leave Comment