A Ecologia do Cuidado  e a Potência da Cura

A Ecologia do Cuidado  e a Potência da Cura

A palavra cura vem do latim, significa “o acto de cuidar ou vigiar”. Este significado simples traz contido em si algo profundo, que pode ser visto como um convite, a repensarmos o nosso lugar na teia da vida.

Num sistema complexo, não existe um papel fixo de cuidador ou vigilante, todas as partes implicitamente cuidam e vigiam. No livro “The Ecology of Care” – A Ecologia do Cuidado –  Didi Pershouse, foca a atenção nas membranas como estruturas inteligentes e porosas, que regulam a permeabilidade de um corpo ao seu ambiente. Segundo Didi, a membrana ao mesmo tempo que permite ao órgão/corpo estabelecer trocas com o meio, constrói as suas barreiras e limites.

Todos os organismos com vida biológica possuem membranas, os alimentos comemos, bactérias, fungos, algas, os nossos órgãos internos todos são compostos de membranas.  

Segundo Didi é a membrana que determina o que é que um organismo necessita, num determinado momento ,num determinado lugar. A questão do lugar é crucial, para a missão cuidadora e vigilante desta estrutura, porque o seu papel activo não se limita ao corpo por ela revestido, mas também, e acima de tudo, às necessidades do ecossistema ao qual pertence.

A inteligência da membrana vem da mutualidade presente, no sistema onde está inserida. O cuidado e a vigilância transformam-se assim em movimento, que flui de forma recíproca, entre os vários componentes desse meio.

Didi ressalva que esta inteligência desenvolve-se através da variedade de informação, que a membrana recebe, no caso do solo por exemplo, é a variedade geográfica: vales, montanhas, picos, depressões, o paul, a ria entre muitos outros… que permitem a troca de informação valiosa, que desenvolve inteligência e a resposta adaptativa da membrana. 

A inteligência depende da diversidade e complexidade do meio.

No caso do solo e do ciclo do alimento vivo estamos a falar de nutrientes e micro-organismos, que dependem desta variedade paisagística, para proliferarem. Uma teia viva de trocas recíprocas que não estão confinadas aos limites de uma zona geográfica, afinal o Tejo que desagua em Lisboa com toda a sua riqueza de vida orgânica, começa a jornada de interdependência num pico bem distante da capital.

Outro papel da membrana é o de determinar o que fica e o que vai, tendo sempre como imperativo máximo o suporte da vida como um todo. No caso da nossa mucosa intestinal, as decisões tomadas no tubo escuro do nosso baixo-ventre, são sempre decisões que tem todo o corpo em consideração e não apenas o intestino.

A pergunta da membrana segundo a Didi é sempre a mesma:

“O que é que é preciso para a vida neste momento?”

A resposta vem do meio.

“Sem interação com outras formas de vida, um sistema vivo começa a perder a sua inteligência.”

Uma vez que somos sistemas complexos, a habitar sistemas complexos, esta visão da ecologia do cuidado recorda-nos que a cura depende: da nossa permeabilidade, da diversidade complexa do meio/ecossistemas que habitamos e do próprio processo de morte e regeneração.

São as trocas entre os meios que desenvolvem esta inteligência do cuidado, a cura nunca pode surgir como algo isolado, ou unilateral, porque ela acontece num processo recíproco de cruzamento de inteligências sistémicas, ligadas ao imperativo biológico de um determinado lugar.

Voltando ao acto de cuidar e vigiar, podemos ver que na verdade muito antes de pensarmos em cura, a cura já está a acontecer, é implícita num sistema complexo.

 A grande questão, e talvez a mais dura na era do Antropoceno, é que esta cura implícita não acontece para servir apenas um indivíduo, mas sim todo um sistema que suplanta em grande medida as estruturas humanas.

Nós habituamo-nos a imaginar a cura como uma acção mecânica e propositada, com o objectivo de resolver alguma coisa, que está mal numa certa localização, tantas vezes descartando e ignorando as mutualidades implícitas.

O médico Gabor Maté, diz que a origem da palavra “healing” – cura, vem de “to make whole again” – tornar inteiro. Quando desejamos ou procuramos cura para isto ou aquilo, precisamos ampliar a nossa imaginação, para perceber que sistemas suportam a parte que está doente e  que história  esta conta em relação ao seu meio. O que é que foi separado ou retirado da grande teia da reciprocidade?  Podemos formular a doença então como um processo implícito de cura, o órgão que manifesta os sintomas não está apenas doente, mas sim a ampliar aquilo que está a ocorrer no meio a que pertence. Gabor refere que em algumas tribos indígenas, o doente é visto como o mensageiro da enfermidade da tribo, aquele que vem mostrar onde a teia foi cortada e como repará-la.

Assim como um problema numa colheita, pode ampliar questões com o solo ou a água, a doença de um determinado indivíduo, pode assinalar um desequilíbrio numa família, no solo, ar, sistema social, cultura ou até mesmo na simbologia psico-espiritual dos sistemas que habita.

Se olharmos para a saúde com estas lentes quem é que tem culpa de ficar doente ou quem é que na realidade se cura?

Referências:

Pershouse, Didi, The Ecology of Care: Medicine, Agriculture, Money, and the Quiet Power of Human and Microbial Communities Paperback, December 10, 2015

Maté, Gabor, The Myth of Normal: Trauma, Illness, and Healing in a Toxic Culture, September 13, 2022

Artigo publicado na minha Coluna “O Canto do Verbo” na Revista Vento e Água

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