A Relação Contemplativa Na Construção De Identidade

A Relação Contemplativa Na Construção De Identidade

Aprendi a contemplar os céus muito nova, graças à minha mãe. Nas noites mornas de verão sentava-me ao seu colo e juntas contemplávamos a paisagem noturna.  A vista era a de um descampado sobre o qual se ergue a capela de Nossa Senhora de Porto Salvo.
Reza a lenda que após um naufrágio, um grupo de marinheiros andava no mar à deriva e tiveram uma visão de Nossa Senhora, que lhes disse que se rezassem com fé os guiaria até um porto seguro. Foi assim que os marinheiros chegaram ao lugar conhecido agora como Porto Salvo, uma freguesia que pertence ao concelho de Oeiras. Ergueram então uma capela em honra de Nossa Senhora como forma de agradecimento.

Apesar das fortes raízes católicas da minha mãe e da materialização de um milagre mariano em frente à janela, elevávamos o olhar para o céu estrelado e eram as estrelas e as árvores cujas copas competiam com o 2º andar onde vivíamos, que nos serviam de altar, e que alimentavam a chama sincera de uma espiritualidade que era ao mesmo tempo livre e constituía uma acto politico e social de rebeldia contra o modelo instituído pela espiritualidade moderna: fosse a procura de ídolos/deuses religiosos ou a utilização da oração como uma forma mecânica de destituição da relação com a vida pulsante.

Este talvez tenha sido o maior presente que recebi na vida, o mais importante de todos: saber reconhecer na natureza e nas relações vivas o meu altar.

Mantive durante a adolescência a arte de contemplar, pelo menos até chegar ao meu 4º septénio, quando o trabalho mais as responsabilidades da vida adulta engoliram cada segundo do tempo do meu relógio.

O quarto septénio (dos 21 aos 28 anos) é caracterizado enquanto fase de desenvolvimento psicossocial como o tempo de procurarmos um lugar na mesa dos adultos, ajustando-nos às cadeiras existentes num determinado grupo, cultura ou sociedade.  Este é o tempo certo para “arregaçar mangas” e provar o nosso valor dentro dos grupos aos quais pertencemos ou pretendemos pertencer.

No entanto chegar aos 40 anos sem ter tido a possibilidade de começar a construir uma “cadeira” que inclua a contemplação e a relação sensível enquanto fibras construtoras do nosso lugar no mundo já se torna um assunto que interfere com a saudável construção da nossa identidade.

Sem contemplação não podemos perceber a relação intrínseca que ocorre no tecido intersticial que nos abraça e compõe.

Essa membrana não é estritamente “nossa”, mas também não está fora de nós. Ela é a inteligência em acção que amplia a perceção para algo mais alargado do que uma exclusiva identificação individual ou até mesmo exclusivamente humana.

A minha mãe ensinou-me a ver o “nós” na paisagem entre céu, estrelas, árvores pedras e flores. O seu conhecimento era puramente empírico e vinha de um lugar de maravilhamento pelo mundo. Aos 40 anos a minha mãe saia de casa às 7h00 da manhã para trabalhar e chegava a casa às 20h00 da noite, ainda assim cultivava no ato de contemplar o céu com a sua filha num momento fora do tempo, uma rebeldia contra a “cadeira” imposta pela cultura moderna, investindo na construção simbólica da sua própria cadeira, o seu próprio tempo de relação subjectiva e afetiva.

Generosamente, permitia-me entrar no seu mundo secreto, um mundo que vinha da sua infância na aldeia, onde o céu se pintalga de mistério e possibilidades. Foi esse céu que a viu crescer e que por sua vez viu crescer a minha avó, a minha bisavó e toda uma linhagem de mulheres ligadas à doce paisagem do rio Douro. Agora constrói o meu corpo de pertença ao tecido transgeracional que nos envolve e permeia, que é ao mesmo tempo meu e nosso, e que por sua vez permite desenvolver a possibilidade de desenvolver a minha identidade não como um nome mas como um verbo em constante conjugação.

Quantos adultos, investem conscientemente em aprimorar ferramentas autorais de construção de espaços psicoafectivos, que promovam estruturas rebeldes de relação tanto interior/exterior quanto de relação com os espaços interstícios onde o “eu” e o “nós” são tanto formas diferenciadas quanto colectivos integrados?

Artigo publicado na minha Coluna “O Canto do Verbo” na Revista Vento e Água

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